segunda-feira, 23 de abril de 2012

O NÓ DA MENTIRA



SE EU SOUBESSE DIZER A VERDADE
EU NÃO JUSTIFICARIA NADA
EU NÃO DARIA DESCULPAS
EU NÃO INVENTARIA HISTÓRIAS
EU SIMPLESMENTE DIRIA
AQUILO QUE SEI E ACREDITO
QUE PODERIA NÃO SER A DITA VERDADE
PODERIA ATÉ SER UMA GRANDE MENTIRA
EXPRESSA COM A MELHOR INTENÇÃO
DE UM CORAÇÃO QUE MESMO ENGANADO
NÃO DESEJARIA NUNCA
ENGANAR NINGUÉM



NO ENTANTO...
EU NÃO SOUBE DIZER A VERDADE
FANTASIEI MINHAS MENTIRAS
COM UMA VERDADE QUE ANSIEI SER MINHA
 VERDADE QUE NÃO CONSTRUÍ
POR NÃO TER A MATÉRIA PRIMA PARA ERGUÊ-LA
VERDADE DESTRUÍDA PELO MEU MEDO
MEDO DE PERDER-TE
MEDO DE PERDER O MEU CHÃO
QUE AGORA FALTA-ME
ROUBANDO O MEU
 E O SEU EQUILÍBRIO



QUISERA, EU
SER VERDADEIRO
QUISERA EU SER EU
EU VERDADEIRO
UM EU QUE VOCE NÃO CONHECEU
PARA QUE VOCE PUDESSE SER
UM SER QUE NÃO CONHECI
QUIS MANIPULAR O SEU DESTINO
MAIS DO QUE ISTO, A SUA VIDA
CONSTRUIR A MEU MODO SUA HISTÓRIA
QUIS SER DEUS
ACABEI SENDO O DIABO



NÃO DEIXE QUE MINHA MENTIRA
TE INFERNIZE
 EXPULSANDO-O DO SEU PARAÍSO
VIVA A SUA VERDADE
LIBERTE-SE ATRAVÉS DELA
ROGO A DEUS
A VERDADE QUE LHE NEGUEI
ROGO A TI
O PERDÃO
POR TER ROUBADO PARTE DE SUA HISTÓRIA
QUE AGORA É TODA SUA
LÍMPIDA E CRISTALINA

  

NÃO MENTI POR AMOR
MENTI POR MEDO
FALTOU-ME SABEDORIA
JAMAIS O AMOR
QUE SUFOCADO PELO MEDO
APRISIONOU A VERDADE
QUE  A TI PERTENCIA
NA CLAUSURA DA MENTIRA
A VERDADE FICOU ATÉ ONTEM
HOJE, SE LIBERTOU
 AGORA, É TODA SUA


USUFRUA ESTE NOVO SABOR
O SABOR DA NOVA HISTÓRIA
TEMPERADA PELA VERDADE
 TRARÁ INICIALMENTE
ESTRANHEZA AO SEU PALADAR
NÃO SEI SE AMARGA
AZEDA OU PICANTE
NÃO SEI SE SALGADA
OU ADOCICADA DEMAIS
SÓ SEI QUE TEM GOSTO
A PRINCÍPIO DESGOSTO
MAS, UM GOSTO COM GOSTO
CAPAZ DE APURAR
 O SEU PALADAR


TRANSFORME-SE
TRANSFORME A MINHA FRAQUEZA
ALIMENTADA PELA MENTIRA
EM ALGO MAIOR QUE ELA MESMA
TRANSFORME A HISTÓRIA
QUE EU NÃO SOUBE TRANSFORMAR
EM ALGO MAIOR QUE A MENTIRA
QUE A NUTRIU, ENVENENANDO-A
TRANSFORME TUDO QUE NÃO VALEU À PENA
NUMA PENA QUE VALHA SER MAIS
SER MAIS VOCE MESMO
APESAR DE TUDO




O NÓ DA MENTIRA




Calipso adorava mentir, pois a verdade sempre fora dura demais para ele enfrentar. Fruto de uma mentira, Calipso nunca conseguiu compreender a sua verdadeira identidade. Tinha sempre a impressão de ser algo que, na verdade, não era. Era produto de uma relação incestuosa do tio com a mãe, embora não tivesse acesso a esta verdade. Tinha uma história de vida, no entanto, mal contada. Precisa acreditar na versão contada pelos familiares de que a mãe não sabia quem era seu pai. A mãe  morreu quando ele era ainda um bebe. Vítima da loucura e de um câncer, jamais pode contar a sua versão ao filho. Pressionada por uma família tradicional e religiosa, será que contaria?
 A história de Calipso cheirava algo proibido. Desde pequeno foi educado a jamais entrar no terreno proibido de sua verdadeira história. No entanto, sentia um impulso genuíno pelo proibido que lhe fora proibido conhecer. Se a verdade era o terreno proibido, melhor adentrar no terreno das mentiras para não criar problemas.
Calipso criava as mais loucas histórias, ora para se sentir aceito, ora para se sentir mais valorizado, ora para se safar das maluquices que aprontava. Até ser desmascarado, a maioria das pessoas acreditava nas suas histórias mentirosas. Sabia mentir, como ninguém, afinal fez mestrado e doutorado em mentira na escola fundada pela própria família. Sentia também, um certo prazer em mentir para a família. Talvez, quisesse, inconscientemente, puni-la, usando o mesmo veneno utilizado por esta. O mais engraçado é que a família se achava no direito de se irritar e se surpreender com as mentiras de Calipso. Enxergava as mentiras do mesmo, mas não enxergava as suas próprias.
Assim que eu tive acesso à verdade de Calipso, este nunca mais retornou a terapia. A família deu um jeito de poupa-lo mais uma vez de sua verdadeira história. O motivo do afastamento de Calipso, justificado por uma tia, fazia parte da coleção de mentiras do álbum familiar. Não sei o que aconteceu com Calipso, só sei que foi morar e estudar numa outra cidade bem distante. Quanto mais distante ele ficasse da verdade, melhor para a família que desejava preservar a imagem de família bem estruturada. No entanto, para preservar esta imagem, Calipso foi sacrificado e mostrava a sua desestrutura nas mentiras que contava e nas loucuras que aprontava. Perdeu, com o tempo, a credibilidade das pessoas. Tornou-se, assim como a mãe que enlouqueceu, o bode expiatório das loucuras de uma família perversa. Não sei se Calipso enlouqueceu ou vai enlouquecer um dia; só sei que, assim como todo louco, jamais viveu a realidade; era, suficientemente, criativo para criar as mais alucinantes histórias que pudessem encobrir a sua própria e dar mais sentido e um toque de prazer na sua realidade.


Existem mentiras de todos os tamanhos. A de Calipso era grande demais, pois o privava  da própria história e da própria identidade. Este tipo de mentira, destrói uma vida ou a torna, no mínimo, confusa e complicada; difícil de viver. O indivíduo tem a impressão de não pertencer à própria história. Sente-se desalojado de si mesmo e sem chão. Quando a realidade que desenha a nossa história nos é negada, perdemos o nosso chão. Uma pessoa sem chão, flutua; está sempre dispersa, alheia ao mundo e àquilo que deveria viver. Está sempre confusa, sem saber se deve ou se pode viver certas experiências, pois tem sempre algo proibido e incerto inscrito na sua certidão de vida.
Alimentar-se de mentiras é uma dieta indigesta para quem deseja amadurecer. Mentimos todas as vezes que nos negamos responsabilizar pela nossa própria vida, pelas nossas escolhas, pelos nossos erros. Mentimos por medo, tentando  esconder nossas fraquezas. Mentimos quando não desejamos enxergar uma faceta da nossa personalidade que mostra as nossas imperfeições. Mentir é uma atitude imatura e infantil frente ao confronto com a nossa maturidade e condição de adulto. Uma mentirinha pequena pode até não fazer tanto mal e nos safar de conflitos que seriam melhor evitar. No entanto, esta mentirinha nos impede de fazer uma reflexão um pouco mais profunda: Será que não existiria uma forma mais inteligente, responsável e sábia de evitar este mesmo conflito? Será que ao invés de mentir, eu não deveria ter usado outros meios mais maduros para evitar aquilo que eu não dou conta de assumir?
Aprendemos a mentir com as próprias estruturas educativas, tais como a família, a escola e a sociedade de uma forma geral. A criança reproduz aquilo que viu alguém fazer. A mentira, às vezes, é tão arraigada ao comportamento dos pais, que estes nem percebem que mentem. Só diante do espelho chamado filho é que percebem a gravidade de uma mentira. Assim como Calipso, o filho utiliza o mesmo veneno utilizado pela família para se safar dos conflitos. Só que a fama de mentiroso recai apenas no mais fraco, e a criança acaba sempre levando a fama. Eleger um bode expiatório é uma forma perversa, porém usada por muitas famílias insanas e falsas para se proteger de uma imagem que não desejam assumir. Os pais mentem para o filho, o professor mente para o aluno, o poder legislativo e judiciário que deveriam ser os grandes representantes da verdade em nosso país mentem para o povo brasileiro. Com tanta mentira, onde fica a verdade? Ela se encontra apenas no espaço comprometido com o seu desenvolvimento, com a sua maturidade e  com a sua evolução. No Yoga, o preceito de Satya  nos convoca a sermos verdadeiros para atingirmos a iluminação. No entanto, em nome das vantagens pessoais que nosso ego anseia, optamos, na maioria das vezes, por permanecermos na sombra da ignorância.
Por trás da mentira tem, muitas vezes, o medo – medo de crescer, assumir as consequências pelos próprios atos, ser responsável pela própria vida, ser julgado, ter que lidar com a frustração quando as coisas não saem exatamente do jeito como a gente imaginou. Só dá conta de ser verdadeiro, quem enfrenta os próprios medos.
Em muitos casos, a mentira vem dar suporte ao desejo de querer levar vantagem em tudo. O mentiroso, neste caso, não suporta a ideia de ser como a maioria. Inventa uma realidade que possa lhe dar privilégios. É uma eterna criança ligada ao princípio do prazer. O princípio da realidade é evitado, pois é duro demais para uma personalidade fragilizada.
A quem tenha uma auto-estima muito baixa e necessite de uma mentira que possa elevar o seu valor, mesmo que ilusoriamente. Aliás, quem mente, adora uma ilusão.
Justificamos sempre as nossas mentiras, mas não fazemos o mesmo quando somos vitimados pela mentira do outro. A mentira dói quando somos o alvo da mesma. Quando fazemos do outro o nosso alvo buscamos sempre uma razão recheada de hipocrisia.
A verdade é relativa. Depende muito do nosso posicionamento frente uma situação. Ela pode mudar frente uma série de fatores. Questões temporais, culturais, tecnológicas, sociais, dentre outras podem transformar uma verdade numa grande mentira ou vice versa. A Terra já foi quadrada, o sol já girou em torno da Terra, vários medicamentos que curavam agora matam,  e por aí vai...Muitas mentiras são fruto de nossa ignorância, outras de interesses de grupo que almejam o poder. Só o tempo e o desenvolvimento de nossa consciência tem o poder de revelar aquilo que nos é velado. No entanto, há quem peça a mentira acima de tudo – “Não me revele o que não dou conta de administrar”. Preferem, acima de tudo, uma mentira que possa anestesiar a dor que a verdade causaria.
Há também os falsos emissários da verdade. Usam a verdade para ferir, punir e para justificar a sua arrogância e falta de educação. Não basta falar a verdade. É necessário saber como e quando evoca-la. Comunicar a verdade é, de certa forma, uma arte. São raras as pessoas que dominam o exercício eficiente da mesma. Poucos sabem utiliza-la com sabedoria. A verdade, quase sempre, precisa ser acolchoada com carinho, respeito e amor para não ferir. Caso contrário, entra dura cortando e podando o que precisa desenvolver.
Educar o outro e educar a si mesmo para a verdade é um grande desafio. A historinha abaixo pode lhe dar um toque educativo neste sentido.



CARA DE CEGONHA


Sabrina, uma menina de 5 anos perguntou a mãe:
—Mamãe, como é que voce ficou me esperando?
—A cegonha lhe trouxe, querida.
—E esta barriga tão grande que está na foto, mamãe?
—A cegonha pôs voce dentro da barriga da mamãe.
—Como é que a Cegonha me enfiou ai?
—Ela abriu minha barriga.
—Com que?
—Com um bisturi.
—O que é bisturi, mamãe?
—É tipo uma faquinha.
—A Cegonha te esfaqueou? Perguntou, Sabrina, assustada e com os olhos arregalados.
—Não, ela só abriu a minha barriga. Ela sabe fazer isto sem dor.
Um mês depois a mãe é surpreendida e grita apavorada:
—Sabrina! O que você está  fazendo com esta faca na mão?
—É para abrir minha barriga, mamãe.
—Pra que, minha filha?
—Para colocar a Paty lá dentro. Respondeu Sabrina apontando para a boneca ao lado.
—De onde você tirou esta ideia?
—Da Cegonha.
—Que Cegonha? Perguntou a mãe confusa como se nunca tivesse ouvido falar em Cegonha.
—Da Cegonha que me colocou na sua barriga. Respondeu, prontamente, a filha.
—Nenhuma cegonha te colocou na minha barriga, sua maluca! Repreendeu a mãe, de forma áspera,  a inocência da menina.
—Mas, foi você quem me disse isto. Justificou a filha.
—Nem tudo que a mamãe diz é verdade.
—Como assim, mamãe. Não é você que vive me dizendo para falar só a verdade?
—É,  mas...Titubeou a mãe sem saber o que dizer.
—Já entendi. Não é para falar mais a verdade.
—Não! Absolutamente! É para falar a verdade  sim. Ordenou a mãe, arrependida com a confusão que gerou na cabeça da filha.
—Não estou entendendo mais nada... Se for para falar a verdade, como é que você me falou uma mentira
—Foi por que... Por...
—Por que, mamãe? Completou Sabrina.
—Por que eu estava com vergonha.
—Já entendi tudo!
—Entendeu o que, menina! Vê se você tem idade para entender alguma coisa? Subestimou a mãe a sabedoria da filha.
—Eu entendi que você pôs cara de cegonha numa atitude sem vergonha.
A mãe quase caiu para trás. Meio sem fôlego, perguntou:
—De onde você tirou isto, menina!
—Meu coleguinha falou que a irmã dele está esperando neném...
—E o que isto tem haver com a nossa história?
—Ele falou que aconteceu isto porque ela é sem vergonha.
A mãe cada vez mais desesperada, sem saber como arrumar a bagunça que criou na cabeça da filha, lamentou exasperada:
—Que confusão eu criei na sua cabecinha. Desculpe-me, filhinha! Mamãe errou, mas promete que não fará mais isto. Eu vou lhe explicar melhor toda esta história.
A filha percebendo o desespero da mãe tentou confortá-la utilizando todo seu conhecimento infantil em processo de alfabetização:
—Preocupa não, mamãe. Você errou só por uma silaba. Trocou o Ver pelo CE. E, se a gente misturar estas letrinhas... Cer-ve – silabou a menina –  “Cerve” o que voce me contou - continuou.
—Serve não, filhinha. Serve escreve com S e não com C.
—Mas, se Vergonha virou Cegonha... O S pode virar C.
—Acho melhor o S continuar sendo S e o C continuar sendo C.
—Por que mamãe?
—Porque senão um dia, a Sabrina linda que eu estou vendo aqui, pode resolver deixar de ser Sabrina para ser outra coisa que a mamãe não vai gostar de ver. Você merece ser Sabrina sempre. Para isto, eu tenho que fazer a minha parte.
—Que parte, mamãe?
—Eu tenho que te contar sempre a história verdadeira.
A mãe colocou a filha no colo e fitando-a nos olhos contou a história que toda criança anseia um dia saber. Na linguagem da filha, usando os recursos que uma criança de cinco anos é capaz de entender, ofertou à mesma, uma verdade que lhe pertencia e que jamais poderia lhe ser negada ou escondida. No final da historia, recebeu como retorno, um sorriso radiante da filha e uma opinião envolta pela simplicidade que falta a todos os adultos:
—Mamãe, esta historia é muito mais interessante! Prefiro muito mais a participação do papai do que de uma Cegonha. Esse bicho, eu não conheço e nunca vi. O papai, eu amo e vejo todo dia. 
A mãe não titubeou em dar à filha um abraço bem verdadeiro, daqueles que só quem ama muito sabe dar.



ESPAÇO DE REFLEXÂO



Pense


1)    Qual foi a maior mentira que você falou ou viveu em sua vida?

2)    Você foi movida por quais sentimentos quando inventou esta mentira?

3)    Que responsabilidades você estava evitando assumir sustentando esta mentira?

4)    O que lhe impedia de assumir esta responsabilidade?

5)    Que parte sua não desejava crescer, negando-se assumir esta responsabilidade?

6)     Quais foram as consequências positivas desta mentira para a sua vida e para a pessoa que voce mentiu?

7)    Quais foram as consequências negativas desta mentira para a sua vida e para a pessoa que voce mentiu?

8)    O que poderia ter acontecido se você tivesse evitado esta mentira, falando ou vivendo a verdade?

9)    Que marcas esta mentira deixou em sua história?

10)Veja-se, agora, vivendo esta história que, você alicerçou com a mentira, de uma maneira diferente, ou seja, alicerçando-a com a verdade.

      11)O alicerce da verdade desperta quais sentimentos em você?

      12)Voce foi perdoado pela pessoa que voce mentiu?

Agora, voce é o alvo...


1)    Qual a maior mentira contada a voce?

2)    Quem lhe contou esta mentira foi movido por quais sentimentos?

3)    Que responsabilidade esta pessoa estava querendo fugir ao lhe contar esta mentira?

4)    Que parte desta pessoa não queria crescer negando-lhe a verdade?

5)    Quais foram as consequências positivas desta mentira para a sua vida e para a pessoa que mentiu para voce?

6)    Quais foram as consequências negativas desta mentira para a sua vida e para a pessoa que mentiu para voce?

7)    O que poderia ter acontecido se esta pessoa tivesse falado a verdade para voce?

8)    Que marcas esta mentira deixou na sua história?

9)    Veja-se agora vivendo esta verdade que lhe foi negada.

10)Esta verdade desperta quais sentimentos em voce?

11) Voce já perdoou a pessoa que mentiu para voce?



DESAFIO


Escolha uma verdade, dentre as que voce esconde, e revele a quem será por ela beneficiado.










segunda-feira, 16 de abril de 2012

O NÓ DAS PROJEÇÕES



QUANDO ME PARISTE
ABORTOU-ME
ENGRAVIDANDO MEU SER
COM SEUS EGOÍSTICOS DESEJOS.
O AR QUE RESPIREI
OXIGENAVA SUAS EXPECTATIVAS
E A ANOXIA DE MINHA IDENTIDADE
PARALISOU O MEU SER.
EU QUE NÃO SABIA
CAMINHAR SOZINHO,
APRENDI A CAMINHAR
COM SUAS PERNAS.
AMPUTADO DE MIM,
PUDE PERCEBER,
TARDIAMENTE,
QUE NASCI MORTO.
ENFORCADO PELO CORDÃO
QUE NÃO FOI CORTADO,
VIVI SIMBIOSE,
MENOS VIDA.
QUISERA TER SOFRIDO
A DOR DA SEPARAÇÃO,
NO ENTANTO, SOFRI
A FUSÃO DE SEU VAZIO.
QUERENDO SE PREENCHER DE MIM,
ESVAZIOU-ME,
NEGANDO-ME O SONHO
DE ACORDAR SOZINHO.
SEPARA-TE DE MIM,
SEPARA-ME DE TI,
SÊ PARA TI,
SÊ PARA AÇÃO.
DESEJO AÇÃO,
AÇÃO DE PARTEIRA,
SEM  A ANESTESIA
QUE POUPOU-ME SENTIR
O QUE SOU.
CONCEDA-ME UM PARTO,
PARTO NORMAL,
PARTO DE TI,
PARA QUE EU POSSA,
FINALMENTE,
PARIR-ME.
 

O NÓ DAS PROJEÇÕES
 

Barnabé Filho, como o próprio nome indica, jamais conseguiu se livrar da condição de filho para ser ele próprio. Sendo filho das invocações dos pais e como representação das últimas esperanças destes em realizar os desejos frustrados através de um filho, passou uma vida inteira sonhando encontrar um tesouro que parecia estar enterrado no cemitério de sua vida: a sua verdadeira identidade.
Quando os pais de Barnabé se engravidaram, ambos profetizaram o destino daquela criança, mesmo antes dela nascer. “Serás um homem, terás o nome do pai e presidirá futuramente as empresas do mesmo”. Não pariram um ser humano. Pariram a clonagem de seus desejos.
Barnabé nasceu clonado, parto anormal, seguindo religiosamente o destino que lhe impuseram. Teve de tudo que os pais não tiveram, só não teve aquilo que realmente necessitava. “Antes que pudesse abrir a boca para reclamar ou reivindicar alguma coisa, os pais argumentavam: Você tem de tudo que nós não tivemos na sua idade”. Já que tinha tudo, como afirmavam os pais, Barnabé, confuso,  começou a achar  uma injustiça reclamar os direitos de ter aquilo que ele precisava. No meio de tantas coisas, precisar de algo mais, parecia egoísmo e voracidade. Sentia-se culpado ao sentir que desejava algo mais, num país onde a maioria tem tão pouco.
Certo dia, numa conversa informal, percebendo a infelicidade e as insatisfações de Barnabé para com a vida, indaguei-lhe:
—Que carreira profissional lhe traria realmente realização e felicidade?
—Ser bailarino. Respondeu prontamente dando uma gargalhada como se estivesse ironizando a própria vida.
—Por que acha graça? E, por que não seguiu esta carreira? Parece-me que sempre teve condições financeiras para ter cursado uma boa escola de balé e realizado este sonho.
—Se eu tivesse escolhido este caminho, mataria meus pais ou no mínimo os enlouqueceria. Respondeu pesaroso.
—Tem certeza que isto aconteceria? Perguntei.
—Absoluta. Primeiro, porque na concepção de meus pais, bailarino não é profissão e nem tampouco uma profissão de homem. Ter um filho bailarino seria o maior desgosto que poderiam ter nesta vida. Acho que me deserdariam e logo após enlouqueceriam. Segundo, porque o sonho deles é aquela empresa que dirijo. Se eu matasse este sonho, rapidamente adoeceriam e morreriam. E, por fim, eles contam comigo para que eu possa auxiliá-los na velhice. Sempre os ouvi dizerem: “Tivemos um filho para que ele possa tomar conta da gente na velhice”. Não pedi para vir ao mundo, mas me sinto,  de certa forma, em dívida com os mesmos.
—Você já pensou que para não matar os sonhos de seus pais, você matou todos os seus? Que tática você usa para se manter vivo?
—Procuro assistir todos os shows de balé e participar de inúmeros eventos e projetos culturais. Respondeu suspirando.
—Isto lhe satisfaz?
—Em parte, na verdade. Confesso que saio alimentado toda vez que me vejo envolvido com tudo isto, mas tão logo retorno à empresa, minhas energias são totalmente sugadas e fico assim, como você está me vendo hoje, estressado, fraco, desanimado, cansado e desenergizado. Não sei até quando vou aguentar tudo isto. Desabafou angustiado.
—Você me parece tão cansado! Por que não faz uma viagem para descansar um pouco? Talvez lhe sobre até um pouquinho de tempo para refletir sobre tudo isto.
—Você tem razão. Aliás, o que mais amo é viajar. Entretanto, a empresa está passando por um momento difícil e não pode ficar sem a minha presença agora.
A empresa dos pais de Barnabé ficou sem a presença do mesmo, não só naquele momento que, segundo ele, tanto precisava dele. A empresa ficou carente de Barnabé para sempre. O filho dos pais contraiu , repentinamente,  uma doença incurável que o matou rapidamente. Numa visita ao mesmo, olhando seus olhinhos tristes, pude ler nas entrelinhas de seu olhar a seguinte frase: “Agora eu me curo”.
No seu enterro, olhando a terra que caía sobre a sua urna, pensei: “Quem sabe, agora, ele possa finalmente desenterrar o seu tesouro”.
A empresa continuou sem Barnabé, seus pais não morreram e todos que o conheceram diziam pesarosos: “Como uma pessoa tão feliz pode morrer tão cedo?”
Ouvindo tudo isto, eu dizia, silenciosamente,  a Barnabé: “Se tem uma coisa que você fez bem, foi representar o papel que lhe delegaram. Apesar de não ter sido um bailarino, foste  um verdadeiro artor”.
Barnabé precisou morrer para se libertar. Espero que possa agora representar bem o papel de ser ele próprio. Gostei muito de Barnabé e me relacionei profundamente com o mesmo, apesar de conhecê-lo pouco. Cheguei a conhecer bem  tudo aquilo que ele não era. Talvez, na eternidade, o verdadeiro Barnabé possa se apresentar a mim. Neste momento, com certeza, ele terá outro nome.


Que papel você tem representado nesta vida? O papel de Barnabé ou dos pais dele? Tens sido a vítima ou tens vitimado alguém? Espero que seja livre o suficiente para escolher o papel que deseja representar. Às vezes,  fazemos parte de famílias ou de uma cultura que nos clona à sua imagem e semelhança. Traçam o nosso caminho e trilhando-o nos perdemos ao longo dele, pois ninguém se encontra num caminho que não seja o seu. É difícil cortar o cordão umbilical. Sem este corte não há vida própria, apenas simbiose. Barnabé não quis cortar seu cordão umbilical e não quis ou não teve muito tempo para pensar no que o mantinha atado aos desejos de seus pais. Muitos se atam ao desejo de reconhecimento, pois carentes de amor, vendem os seus sonhos para comprar a aprovação dos pais. Barnabés Filho são sempre muito carentes, pois os pais destes não possuem amor para doar. Pais de Barnabés são sempre crianças mimadas que cresceram apenas no tamanho. Continuam brincando de bonecas, transformando seus filhos em seus brinquedos prediletos. Poderíamos até dizer que “amam” estes brinquedinhos. Amam na concepção de amor que adquiriram ao longo da vida. Amar, para eles, é receber, receber, receber. Nunca concebem o amor como doação e respeito. Às vezes, dramatizam bem o papel de doador, mas assim que a peça teatral termina, cobram com juros e correções cada gesto ofertado ao próximo. Utilizam muito a culpa em suas cobranças: “Eu sempre fiz tudo por você e você não vai fazer isto por mim agora?”. Respeito é uma coisa que não conhecem. Conhecem bem os seus próprios desejos e caprichos. Passam uma imagem de profundo respeito pelo outro, pois ofertam a este tudo que podem. No entanto, este tudo deverá ser sempre retornado em dobro. Quem recebe o seu tudo, recebe juntamente a nota promissória de uma dívida que jamais será quitada, pois a sua suposta benevolência e boa vontade cobra juros altíssimos, impagáveis. São verdadeiros agiotas emocionais. Ilusoriamente se enriquecem tomando a vida do outro para si. Mas, no fundo, sentem-se miseráveis. A fome de viver o que não deram conta de viver é projetada sobre o outro. A projeção é tão forte que os filhos passam a acreditar, realmente, que possuem fome daquilo que os pais necessitam. Este filhos agem como obesos que compulsivamente se alimentam daquilo que o corpo não carece, ou seja, levam para a própria vida a necessidade do outro. Se  empanturram de desejos que não lhes pertencem. E, as suas verdadeiras necessidades e desejos vão ficando sempre em segundo plano.
Outros Barnabés se atam aos pais pelo desejo de proteção. Não foram educados para a liberdade e independência. Pais de Barnabés alimentam uma dependência mútua. “Preciso da sua vida para viver aquilo que não dei conta de viver na minha e você precisa da minha para sentir-se seguro”. Ofertam aos filhos uma falsa segurança, uma gaiola segura que incute nos mesmos a  insegurança que necessitam para mantê-los dependentes e escravizados. Liberdade é apenas uma palavra bonita, jamais uma prática na vida dos Barnabés. A estória do Passarinho Engaiolado de Rubem Alves, retrata bem a condição dos mesmos. Se a gaiola que representa a proteção for, um dia, aberta para o mundo que representa a liberdade, o Barnabé aprisionado durante tanto tempo dificilmente escolherá os riscos que liberdade impõe à sua vida. Com as asas enfraquecidas pelo medo, insegurança e comodismo, dificilmente terá coragem de alçar voo.
Como o exemplo é o principal pilar da educação, pensemos agora nos exemplos que pais de Barnabés ofertam aos filhos. Possivelmente, pais de Barnabés foram também vítimas de pais iguais a eles. Absorveram a covardia, o medo e  a insegurança como modelos seguros de vida. Talvez o lema principal seja: “Não faça, deixe que o outro faça por você”. Como precisaram cumprir fielmente o papel que os pais  lhe delegaram, passam aos filhos o papel de cumprir o sonho que não foi aceito pelos pais (avôs de Barnabés). E assim, uma geração vai sempre cumprindo o papel da anterior. E aqueles papéis que não podem jamais serem abandonados, por representarem os interesses e valores de uma família rígida que não suporta mudanças, vão também sendo repassados como lei. Quem se atreve a burlá-los para viver a própria vida e os próprios interesses pessoais, torna-se a ovelha negra da família. Existem muitas que se desgarraram do rebanho para seguir o seu próprio caminho, no entanto,  esta postura requer muita coragem e maturidade.
Pode parecer mais fácil ser um pássaro engaiolado do que uma ovelha negra. Pode parecer mais seguro receber água fresca e comida todos os dias sem precisar de lutar  pela própria vida e sem precisar assumir os riscos naturais que esta fartamente nos oferece. No entanto, o corpo físico do pássaro engaiolado perecerá rapidamente se seu dono deixar de existir, ou primar pela negligência esquecendo-o no sol ou deixando de alimentá-lo. Sendo assim, dependerá sempre da existência e boa vontade do outro. Esta dependência doentia lhe trará apenas a doença do medo e da insegurança, transformando-o, com o passar dos anos, numa pessoa triste e deprimida. Por mais que consiga sobreviver dentro de uma gaiola, as suas emoções e a sua mente estarão vegetando. Dificilmente terá o prazer de pensar por si e de viver aventuras emocionantes que a liberdade oferece.
Por outro lado, não é nada fácil ser a ovelha negra. Assumi-la é aventurar-se aos riscos e perigos que a vida nos impõe. Inicialmente, a sensação de estar perdido poderá prevalecer, pois encontrar as suas próprias referências e desejos pressupõe,  inevitavelmente, desapegar-se e perde-se de tudo aquilo que não é verdadeiramente seu. No entanto, se tiveres força e coragem, sairás mais forte e com a deliciosa sensação de vitória por ter ao longo do caminho conquistado a valiosa condição de ser você mesmo.
Quando vejo famílias de Barnabés, leio nas entrelinhas destas relações uma triste poesia que diz mais ou menos assim:


A VIDA É POUCO,
POR QUASE NADA PERMITIR-ME.
NADA VIVI,
DO QUASE MUITO QUE SONHEI.


MORRI.


A VIDA É POUCO,
NÃO ME BASTA.
QUERO VIVER NESTA, VÁRIAS VIDAS.
RESTANDO-ME PARIR CORPOS,
ULTRAJANDO SUAS ALMAS COM MEUS DESEJO


Quando decidires parir, pense conscientemente no que está gestando dentro de ti. Objetos para satisfazerem suas necessidades podem ser comprados em qualquer estabelecimento comercial. Queres um ser humano ou um objeto de seu desejo? Gerar um ser humano é, antes de mais nada, aceitar o desafio de parir e educar para vida, jamais para si mesmo. Não viemos ao mundo para sermos a projeção ou o espelho do outro. Viemos para sermos nós mesmos. Somos únicos, por isso somos especiais. Se formos como o outro não seremos tão especiais assim.
Para que você não se transforme num obsessor, tentando roubar do outro, prazeres e toda uma vida que não lhe pertence, talvez, a história da Juju possa lhe ensinar alguma coisa. Esta “estória” é na verdade uma história real, porém, ornamentada com um pouquinho de fantasia que retrata a realidade de nossas aves. Depois de lê-la, é possível que se engaje na luta pela preservação e respeito pelas nossas maritacas. É provável também, que comece a questionar as suas boas intenções para com as pessoas e para com os animais.


Juju


Era uma vez uma maritaca chamada Joana. Joana nunca foi nome de bicho, mas quando se tenta transformar bicho em gente, tudo é possível. Antes de se tornar Joana, a maritaca desta história vivia feliz em seu ninho sendo carinhosamente alimentada por sua mãe que, dedicada a alimentá-la e protegê-la, esperava ansiosamente que suas penugens se transformassem em penas para lançá-la em seu primeiro vôo pela imensidão azul do céu. Aquele filhote, sem nome e sem identidade, esperava também o momento certo para receber as suas primeiras lições de vôo livre. Mostrando o vôo e a algazarra de inúmeras maritacas que voavam alegremente, a mãe lhe dizia:
— Em breve, poderás também experimentar o seu verdadeiro potencial.
—O que é potencial? Perguntou o filho, curiosamente.
—Potencial é o seu verdadeiro poder de ser.
—Ser o quê?
—Ser você mesmo.
—O que sou? Perguntou o filhote confuso.
—És uma ave livre e feliz. Veja como nossas companheiras voam alegremente pelo céu. Estamos sempre em festa, pois festejamos a cada dia a nossa existência. Existimos, e isto nos basta.
O filhote de maritaca aguardava tranqüilamente o seu momento até que sua tranqüilidade foi, inesperadamente, roubada por um bicho perigoso chamado homem. Furtado de sua vida junto à natureza, foi jogado dentro de uma caixa escura, bem diferente do confortável ninho em que se encontrava. Sua mãe tentando protegê-lo, gritava desesperadamente e atacava com seu bico e unhas afiadas aquelas mãos enormes que seguravam agressivamente seu filhote ainda frágil. Como na lei da selva sempre vence o mais forte, o bicho homem conseguiu vencer a mãe e apropriar-se de seu filho. Aquela ave livre se transformou repentinamente em mercadoria. Dentro da caixa ouvia atentamente um barulho e um cheiro estranho jamais sentido. Vez ou outra, aquelas mãos grosseiras retiram o frágil filhote de dentro da caixa exibindo-o diante de uma natureza árida e de animais estranhos que passavam velozmente rosnando e empoeirando tudo ao redor. Subitamente, um destes animais parou e dentro dele saiu outros bichos iguais aqueles que haviam lhe separado da mãe. No entanto, um deles tinha um piado mais suave. Sem entender a linguagem deles, mas observando tudo ao redor, percebeu que algumas folhas, nem tanto parecidas com as folhas da árvore que lhe abrigava, foram trocadas entre aqueles bichos estranhos servindo de ponte para que ele pudesse agora mudar de dono. Eis a conversa do bicho homem que não foi compreendida pelo filhote de maritaca:
—O que é isso, moço?
—É maritaca, dona. Quer levar uma?
—Coitadinha. É tão pequena! Você não tem pena, não?
—Pena? Isso é igual praga por aqui. Se a gente não pega, outro acaba pegando.
—Devia ser proibido tirá-la do ninho nesta idade. Ela pode morrer.
—Proibido é, mas a gente tira assim mesmo. Se você levar tenho certeza de que ela sobrevive.
—E se eu não levá-la?
—Ela morre e a gente pega outra.
—Você tem coragem de deixá-la morrer?
—E precisa de coragem pra isso, dona?
Aquela dona, abismada com a frieza daquele ser que de humano nada tinha, olhou no fundo dos olhos daquela maritaca e apaixonou-se com a inocência que brilhava em seus olhinhos. Não teve coragem de abandoná-la e propôs um acordo àquele insensível mercador de aves:
—Se eu comprá-la você me prometeria colocá-la novamente no ninho ao qual você a retirou?
—Tem jeito não, dona.
—Por que? Eu te pago para que ela volte à natureza.
—Eu poderia até usar de sua boa vontade, mas não vou fazer isso não. Infelizmente, ta tudo destruído. Se voltar com ela pro mato, ela morre.
—A fiscalização não costuma passar por aqui?
—Até que passa de vez em quando, mas a gente sempre fica sabendo antes.
A conversa foi interrompida por uma criança que implorando à mãe conseguiu convencê-la:
—Por favor, mamãe! Leva ela. Eu não quero que ela morra.
—Mas, minha filha, ela pode morrer com a gente.
—Se cuidar direito, ela não morre não, dona – interferiu o mercador de aves.
—Como se cuida deste bichinho? Perguntou a mãe, temerosa de não dar conta de uma tarefa, à primeira vista, imprópria aos seres humanos.
—É só dar angu na boca. Respondeu, prontamente, o mercador,
—Mas, angu é coisa que maritaca nunca comeu, moço! Angu é comida de gente.
—Com o tempo ela aprende a comer e a viver como gente, dona.
Sem opção, a dona de bom coração resolveu levar a maritaca. Colocou-a dentro de seu automóvel até então percebido pelo filhote como um grande bicho que rosnava e voava velozmente por uma trilha chamada rodovia. Apesar de assustado, aqueles novos bichos pareciam mais mansos. Acariciavam a sua cabeça de uma maneira não tão delicada como a sua saudosa mãe fazia, mas pareciam não representar uma ameaça à sua vida.
O tempo dentro daquele bicho estranho que rosnava parecia não terminar nunca. Será que viveria ali pelo resto de sua vida? Foi ficando com fome e com sede. Quando é que aquele bicho homem se portaria como a sua mãe adivinhando o momento certo de alimentar-lhe?
—Mamãe, será que ela está com fome? Perguntou a filha adivinhando as necessidades do bebê maritaca.
—Acredito que sim, filha. Mas, o que vamos dar a ela agora? Não temos aqui comida de maritaca e nem como preparar um angu bem gostoso para ela.
—Talvez ela goste de biscoito de chocolate. Se ela se parecer comigo, vai devorar este pacote inteiro.
—Biscoito é comida de gente. Pode ser que ela não goste. Advertiu a mãe.
—Angu também é comida de gente e ela come. Vamos tentar? Melhor do que deixar ela morrer de fome. Sugeriu a criança.
—Esfarele um pouquinho em sua mão e coloque dentro do bico dela. Vamos ver se ela aceita. Recomendou a mãe, um pouco receosa.
A criança esfarelou um pouquinho de biscoito recheado de chocolate em sua mão e um tanto sem jeito, com o carro fazendo curvas e caindo de minuto em minuto nos buracos da pista da rodovia mal conservada, foi colocando os farelos no bico da maritaca. Quase que os dedinhos finos daquela criança desciam também goela abaixo junto com os farelos de biscoito. Segurando-o pelo pescoço, ou melhor, enforcando-o com as melhores intenções que uma criança pode ter por um animal desconhecido, a menina se exaltava toda vez que conseguia fazer uma massa de biscoito esfarelado descer pela goela do bichinho.. Parecia um jogo, onde o alvo era o estômago daquela maritaca.
—Olhe, mamãe, ela está adorando!
—Não posso olhar. Tenho que manter a minha atenção na estrada.
Com seu jeitinho infantil, a doce e bem intencionada menina cuidava de uma maritaca indefesa que engolia e se entalava sem nada poder dizer. Sem entender a linguagem daquele bicho que dela cuidava, a maritaca começou a berrar pedindo socorro. A menina, prosseguiu:
—Olhe como ela está feliz, mamãe! Ela já está até cantando. Pode dar o pacote todo?
Por sorte da maritaca, a mãe interveio com precaução:
—Melhor não dar mais nada, pois ela pode não se sentir muito bem depois. Dê água, pois ela deve estar com sede.
—A água acabou, mamãe. Só resta uma caixinha de suco de goiaba. Pode dar o suco para ela?
—Será que maritaca gosta suco?
—Ela deve gostar de fruta, principalmente de goiaba que tem tanta semente. Todo passarinho gosta de semente. Acho que vai adorar, mamãe!
—Então, experimente! Veja se ela aceita.
Querendo alimentar, carinhosamente, o seu mais novo bichinho de estimação, a menina prosseguiu com suas idéias eminentemente infantis:
—Vou cuidar dela como cuido da minha boneca papinha.
Como se fosse o bico de uma mamadeira de boneca, a menina enfiou o canudo presente na caixinha do suco pela goela abaixo do bebê maritaca. Vendo que não saía nada e percebendo a aflição da ave que agora já nem berrava mais, a garota mudou sua estratégia. Abriu um buraco bem grande na caixa e derramou o suco no bico da ave. A maritaca se afogou no suco de goiaba e seu corpo ainda em penugens foi sendo banhado por aquele viscoso líquido vermelho. Terminado o tratamento, perfeito para a criança e traumático para a maritaca, a criança deu-se por satisfeita:
—Ela está toda melada, mas relaxou e dormiu, mamãe. Será que ela vai gostar de mim?
—Com certeza, filhinha. Você cuidou tão bem dela que ela vai querer que você seja a sua mãezinha.
A viagem chegou ao fim e com ela quase chegou ao fim a vida daquela maritaca. No entanto, aquele bichinho conseguiu sobreviver. Cuidados especiais passaram a ser dedicados ao mesmo por aquela família que o adotou como se fosse uma filha. Após a viagem, orientada por uma veterinária que ajudou a salvar a vida do bicho, a família tentou adaptar a sua alimentação e cuidados especiais às suas reais necessidades. A maritaca foi condenada a sobreviver, pois a vida plena já não lhe era possível viver, já que esta lhe fora negada no dia em que lhe privaram do contato com a natureza.
A sua nova família lhe dedicava atenção, carinho e amor. Tratavam-na como um ser humano. Vangloriavam-se por tratar tão bem uma simples ave. Nunca pensaram que nenhum bicho, em sua essência, gostaria de ser tratado como gente. Até nome de gente deram ao mesmo.
—Precisamos de dar um nome a esta maritaca, mamãe.
—É verdade, minha filha. Todos nós temos um nome. Que nome daremos a ela? Se eu tivesse uma outra filha, lhe daria o nome de Joana. Acho lindo este nome.
—Ótimo, mamãe! Podemos apelidá-la de Juju.
Sem se preocuparem com o sexo da maritaca, batizaram-na de Joana. Este nome satisfazia o desejo daquela mãe bem intencionada. De boas intenções o mundo está cheio!.. No entanto, nem sempre o bem intencionado pára para pensar na intenção do próximo. Juju, por exemplo, foi vítima das boas intenções daquela família. Quando chegaram a saber que Juju era macho, já era tarde demais. A ave já estava quase aprendendo a pronunciar o seu próprio nome e se reconhecia como tal.
—Olhe como Juju consegue voar alto! Exclamou exultante a doce criança da casa depois de alguns meses de cuidados intensivos e maternais para com a ave.
—Precisamos tratar, urgentemente, de cortar as asas dela. Proferiu a mãe checando as asas da ave que iniciava, alegremente, suas primeiras tentativas de vôo.
—Ela me parece tão feliz! Não acho justo tirar esta felicidade dela. Questionou a filha.
—É preferível negar a ela o direito de voar do que de viver. Ponderou a mãe supondo, naquele momento, ser a dona da razão.
Sem entender as ponderações racionais da mãe a criança perguntou, confusa:
—Todo pássaro voa. Por que o vôo de Juju a mataria?
—O seu vôo lhe traria a liberdade. De posse dela, Juju nos deixaria e partiria para o mundo onde seria rapidamente devorada por outros animais mais fortes do que ela. Ela vive no mundo dos homens. É totalmente protegida por nós. No reino animal não saberia lutar pela sua sobrevivência, pois não aprendeu a se defender e nem mesmo a buscar o seu próprio alimento.
A idéia de perder o seu bichinho de estimação calou qualquer questionamento que aquela criança pudesse fazer. Era ainda muito imatura para aceitar a perda ou lidar com o trágico e misterioso tema da morte. As asas da maritaca foram cortadas. Seguindo o critério das boas intenções, lhe foi permitido gozar nos finais de semana o prazer de pular, galho em galho, numa pequena árvore presente no jardim do sítio da família.
—E, se a gente deixasse ela ficar, hoje, nesta frondosa amendoeira? Perguntou a filha, numa outra ocasião, querendo ampliar o espaço para a ave que parecia se sentir tão acuada.
—Ela subiria alto demais e não teríamos como pegá-la de volta. Advertiu a mãe com cautela.
Diante de tantos cuidados e precauções, Joana desistiu, finalmente, de ser uma ave. Vivia como gente e aprendeu a viver como gente que desaprende a ser livre. Teve sua liberdade conquistada no limitado espaço do apartamento onde vivia. Assim, ao contrário de muitas maritacas e papagaios, suas frágeis perninhas jamais foram amarradas no poleiro do aparador onde passava a maior parte de seu tempo. Pela manhã, ao acordar parecia contente. Dava seus gritos acordando toda família. Descia do poleiro, andava pelo corredor da casa, entrava em cada quarto dirigindo-se para as cobertas que esparramadas pelo chão serviam de plataforma para alcançar o alto da cama onde carinhosamente bicava o rosto de cada membro daquela família que acordava feliz por ter uma maritaca tão amistosa. Todos que conheciam Juju diziam satisfeitos: “Esta maritaca parece gente”! No entanto, nunca ninguém questionava: “Será que esta maritaca que parece gente, deseja mesmo esta vida de gente?”.
Apesar da aparente felicidade, Juju não viveu muito tempo. Em um dia comum, diante de um procedimento também comum da doméstica que trabalhava para aquela família, Juju foi degolada na porta da cozinha. Muito assustada e temendo a reação da família, a empregada se justificou:
—Juro que não vi. Este poleiro não poderia ter ficado sobre esta porta. Juju fez um malabarismo com seu corpo projetando-o para baixo, esticando seu pescoço justamente no momento em que fechei a porta.
—Nós que sempre tomamos o cuidado de protegê-la da panela de feijão, de um pisão descuidado, ou de sua perigosa liberdade junto a outros pássaros que poderiam matá-la... Como é que nunca pensamos nesta possibilidade? Esta porta maldita! Juju nunca fez isto?
Ninguém se perdoou e jamais entendeu como Juju pôde ter agido de uma forma jamais prevista por aquela família. Eles não sabiam ainda, que chegada a hora de nos libertar fazemos coisas que jamais ousamos fazer antes. Todos se julgaram responsáveis pelo acidente de Juju. Ela não morreu fulminantemente. Penou com o pescoço quebrado por algumas horas.Todos penaram com ela. Durante a madrugada gritava de dor. Seus olhinhos imploravam aos donos a tão desejada liberdade que lhe fora roubada. Naquele momento de desespero, ninguém teve coragem de ofertá-la com as próprias mãos, mesmo sabendo que nada mais poderia ser feito. No entanto, o anjo das maritacas, com suas enormes asas, apareceu pela madrugada libertando Joana, Juju e aquela maritaca que parecia gente. Agora ela poderia ser finalmente um pássaro, nada mais do que isto.
Tentando elaborar a perda e entender o tão complexo conceito de morte, a filha implorou aos soluços:
—Você sempre protegeu e salvou a Juju de todos os bichos terríveis. Salva ela agora, mamãe!
Com lágrimas escorrendo pelos olhos e impotente para protegê-la e salvá-la de um simples procedimento doméstico, a mãe finalmente entendeu a mensagem que a vida lhe mandara, repassando-a a filha:
—Às vezes, nos achamos dona da razão e esquecemos que cada ser possui a sua própria razão de ser. A morte é inevitável a todos nós, a liberdade não. Negamos a liberdade a Juju, tentando, neste tempo todo, negar a morte a nós mesmos. Agora, a morte está aqui e nada podemos fazer. Em algum momento ela sempre virá, queiramos ou não, ela baterá sempre em nossa porta. Juju precisa morrer para esta vida pra poder conquistar a vida que a sua alma realmente almeja. Nós matamos a liberdade de Juju quando aceitamos trazê-la para o mundo dos homens. A porta apenas lhe trouxe a liberdade de volta.
Aquela maldita porta se fechou trazendo imensa tristeza e angústia para todos os membros daquela família que hoje luta pela preservação ecológica. Mas, se abriu definitivamente para aquela maritaca que pode finalmente voar alto e servir de exemplo para quem possui ainda a medíocre idéia de criar no poleiro o que anseia viver livre.
Hoje, na varanda do apartamento, a família que adotou Juju presencia alegremente a liberdade dos pássaros que visitam o aparador de Juju apenas para saborear alimentos que lá são colocados para satisfazer as necessidades do corpo. A lição saboreada por aquela família jamais foi esquecida: “As necessidades da alma devem ser única e exclusivamente uma escolha inerente e específica de cada ser".





ESPAÇO DE REFLEXÃO
   
Será que você é um Barnabé ou uma Juju – vítima das boas e das más intenções dos outros? As reflexões abaixo, poderão situá-lo frente a si mesmo.

(  )Preciso da aprovação do outro para sentir-me bem
(  )A aprovação do outro é mais importante do que a minha própria
(  )Temo ser rejeitado, por isso faço o que eles esperam de mim
(  ) Não tenho coragem de viver o meu verdadeiro sonho
(  ) Estou vivendo muito mais o sonho do outro do que os meus próprios
(  ) Não sinto que seria aceito se assumisse o meu verdadeiro jeito de ser
(  ) Não escolhi a profissão que corresponde a minha verdadeira vocação
(  ) Quero agradar a todos
(  ) Deixo de agradar a mim para agradar o outro
(  )Não coloco limites para o outro
(  ) Estou representando o papel que delegaram para mim
(  ) Ninguém me conhece de verdade
(  ) Sinto-me culpado quando não correspondo às expectativas do outro
(  ) Não tenho coragem de ser o que sou de fato
(  ) Decepcionaria o outro se fizesse o que tenho vontade de fazer; por isso, não faço
(  ) A vontade do outro é mais importante do que a minha
(  ) Sempre pergunto primeiro o que o outro quer fazer
(  ) Sempre respondo: “Você é quem sabe”
(  ) Quero ser o mais amado e desejado
(  ) Não quero que ninguém se aborreça comigo
(  ) Habituei-me e conformei com a vida que não sonhei
(  ) Tenho medo de ver o outro sofrer se eu não fizer o que ele espera de mim
(  ) Sentir-me-ei desprotegido se o outro me abandonar


DESAFIO

Olhe-se no espelho durante alguns minutos. Olhe no fundo de seus olhos. Encare a si mesmo até que seus olhos possam lhe dizer algo que só os seus olhos podem lhe dizer. Escute com o seu coração a mensagem de seus olhos. E, faça alguma coisa com esta mensagem. Não a guarde na gaveta do esquecimento de sua mente que mente para proteger o seu ego. Se não souber o que fazer, peça ajuda, mas reconheça o significado e a importância da mensagem do seu olhar. Esta mensagem, com certeza, carrega o seu brilho e a sua luz. Desvenda-la e vivê-la é uma forma de sair das trevas do "Não Ser."