quarta-feira, 9 de julho de 2014

NÓ DO MÊS



A DIALÉTICA DO DESEJO



 DESEJEI O DESEJO
 DESEJEI A FALTA DELE.
NA FARTURA DE TANTOS DESEJOS
ME FALTOU O DESEJO CERTO,
CERTAMENTE , A AUSÊNCIA DELE.
MAS A AUSÊNCIA SE FAZ FALTA
E DA FALTA SEMPRE BROTA
 O INCERTO DESEJO
QUE TUDO DESEJA,
INCITANDO-ME DESEJAR TUDO
QUE NÃO SE DEVE ANSIAR.
A ÂNSIA QUE FEDE DESEJO
EXALA ESTE AROMA QUE NÃO SAI DE MIM.
QUISERA EU, TER CHEIRO DE NADA,
MAS,  O NADA EXALA UM VAZIO
QUE NÃO DOU CONTA DE PREENCHER.
EMPANZINADA  COM TUDO
QUE TAMBÉM NÃO ME PREENCHE
CONTINUO DESEJANDO
O CRUEL E DIALÉTICO DESEJO
DE NADA DESEJAR.



O NÓ DO DESEJO


Desidéria sempre foi uma mulher repleta de desejos. Desejava, sobretudo, ser “a desejada”. Nunca foi nutrida satisfatoriamente com afeto pelas figuras parentais. Não se sentiu objeto de desejo em suas primeiras relações objetais.  Era uma criatura muito carente. Nasceu no distrito de uma pequena cidade do interior, mas sempre desejou os grandes centros. Amaldiçoava as suas origens,  a sua terra desconhecida e o povo simples daquele lugar. Sonhava com a pompa,  com o luxo e com o poder de sedução das atrizes de cinema de Hollywood.  Escondia sua mania de grandeza por detrás de uma fachada de simplicidade forjada e dramatizada para ser aceita e querida. Mas, a sua máscara sempre caia no convívio diário com gente que não preenchesse a sua sede de musa. Sentia-se a vítima dos encantamentos e desencantamentos que provocava nos outros. O que Desidéria mais temia era , na verdade, o que ela mais desejava. Temia a inveja das outras pessoas. Ser a invejada pressupunha não só ter o que o outro não tinha, mas, sobretudo, gerar neste outro o incômodo desejo de possuir o que era exclusividade sua. Gostava deste jogo de poder – poder ter o poder que ao outro faltava. Mas, por outro lado, este jogo lhe rendia a negatividade deste outro que, invejando-a,  tentava sugar a sua luz. Mesmo que artificial, esta luz que Desidéria exibia só iluminava o mundo de pessoas que se encantavam com a futilidade.
Desidéria nunca desejou, de fato, ser ela mesma. Na verdade, não sabia, nem mesmo, quem ela era de fato. Acostumada a representar, confundia-se com seus personagens preferidos. Era vítima dos encantamentos de pessoas iguais a ela. Chorava a dor de ser absorvida por tantas energias negativas, mas não abria mão deste cenário ao qual escolheu representar seu drama pessoal. Algumas vezes, tinha a lucidez de sentir a luz de sua alma. No entanto, esta luz não iluminava cenários artificiais. A luz de sua alma iluminava apenas o que ela rejeitava viver: uma vida autêntica. Ser verdadeira era o grande desafio que Desidéria sempre rejeitou. Escrava de um Ego que a aprisionava nas grades de insaciáveis desejos de ser o centro das atenções, pagava a pena diária da infelicidade e da paralisia de seu desenvolvimento pessoal. Por traz da imagem de uma mulher sedutora e  poderosa, vivia uma criança assustada e mimada que ditava as regras para um ser que não conseguia ter autoridade sobre si mesma. Sentindo sempre a falta de alguma coisa que não sabia o que, Desidéria contraiu uma depressão que se tornou a sua maior companheira.

Temos muitos desejos. É bom ou ruim tê-los? É bom tê-los na medida certa, na linha que define o equilíbrio que nos faz seguir em frente, buscar e construir objetivos saudáveis de vida. É ruim, quando nos tornamos escravos dos mesmos e perdemos a nossa direção. Há quem deseje direcionar o outro, além de si mesmo. Deixar o outro numa posição que lhe seja cômoda para satisfazer os desejos, mesmo que insanos, de um ego devorador. Há quem deseje não só a própria vida, mas a vida alheia também. Aos insaciáveis, os desejos se tornam perversos e doentios.  Com desejos doentes a gente se torna doente também.
Não é necessário negar os nossos desejos. Precisamos administra-los. A negação de desejos estimula, ainda mais, outro desejo mais forte -  o desejo de não desejar.
Há quem só deseje e não opere trabalhos necessários para a realização de seus desejos. Isto é muito perigoso, pois gera inúmeras frustrações. Trabalhar para realizar é uma lei muito importante que gera realização e, consequentemente, satisfação. O indivíduo frustrado é aquele que não realiza. O indivíduo que não realiza é aquele que não executa o trabalho certo. O indivíduo que não trabalha é aquele que deseja ser servido; para isto, acaba por transformar o outro em seu servo, ou no mínimo, deseja isto.
Alguns grandes mestres trabalharam no sentido de anular o desejo e o ego. Em função disto, muitos veem os desejos como uma manifestação imatura de nosso ser. A imaturidade sempre vai existir frente à maturidade. É o nosso obstáculo, mas é também a nossa desafiante condição atual. Há sempre a possibilidade de sermos mais maduros do que somos no momento. Mesmo o maior mestre que por aqui tenha passado, é imaturo frente a maturidade que ainda possa alcançar. Como seres humanos, estamos ainda numa condição muito imatura de ser: o “ser desejante”;  não adianta querermos negar esta nossa condição. O melhor a fazer no momento é administra-la.  Como salientei, anteriormente, nega-la pode ser muito perigoso, podendo incitar desejos ainda mais perniciosos capazes de se tornarem obsessões. Somos seres de falta. Não sabemos ainda lidar com ela. Somos como uma criança que não aprendeu ainda a andar. Daí, não adianta exigir desta criança a condição de mestre. Como fazer uma maratona de dezenas de quilômetros se não conseguimos ainda dar os nossos primeiros passos, ou se estamos ainda apoiados em algum suporte que nos mantem de pé ou tentando nos equilibrar para levantar e não cair? Antes de nos tornarmos mestres na área do desejo, precisamos passar primeiro pela condição de aprendiz; aprender, sobretudo, a desejar de forma saudável e cada vez menos de uma forma doentia tal qual somos estimulados a maior parte do tempo, principalmente por uma  sociedade materialista e capitalista  que se mantem forte graças à nossa fragilidade.  Quanto mais frágil, mas voraz seremos para nos sustentar com algo que nos dê a ilusão de força e plenitude. O mundo capitalista não precisa de pessoas fortes; precisa de pessoas vorazes. Assim, estará sempre nos estimulando a pensar que temos muito pouco e que precisamos de muito para sermos, de fato, reconhecidos e aceitos.
Somos quase sempre muito egocêntricos. O egocentrismo é uma condição infantil que deveria ser superada quando nos tornamos adultos. No entanto, crescemos só no tamanho e na idade. Dentro de um corpo adulto existe, quase sempre, uma criança fazendo birras descomunais.  É preciso entendermos que os nossos desejos não são ordens que precisam ser necessariamente cumpridas, principalmente pelo outro que nem sempre compartilha o mesmo desejo nosso.
Desidéria era um ser carente e um ser carente demanda sempre muito mais do que se tem. Nunca está satisfeito consigo mesmo e com nada que alcança. O desejo de uma pessoa carente não tem limite. E, sem limite fica esta pessoa, sobretudo, para desejar.
Como seres de falta, precisamos representa-la para não sentirmos angustiados. Precisamos aprender a lidar com as nossas perdas, saber o que fazer com elas para não cairmos em depressão. O desejo saudável ajuda no sentido de favorecer a busca de novas conquistas. O deprimido traz para dentro de seu ser a perda e a derrota, materializando a falta através de uma doença que é a somatização daquilo que não consegue suprir em si mesmo. O deprimido é como um ser sem suprimento. Podemos, em algum momento, não ter todos os ingredientes para fazer uma boa feijoada, mas precisamos ter suprimento para fazer, no mínimo, um feijão que mate a nossa fome. Se não tiver  feijão, transformar a fome num jejum que nos torne, no mínimo, mais fortes espiritualmente. Transformar as nossas derrotas numa experiência de crescimento é o mínimo para quem deseja seguir em frente. Ruminar nossas desgraças só traz indigestão mental, emocional e física.
A pessoa madura consegue lidar com a lei da interdição: dizer sim ao que pode ser sim e dizer não ao que não pode ser. Isto não significa ser resignado  e desistir de mudar aquilo que você pode mudar. Precisamos desistir de mudar apenas o que não depende da gente mesmo e  aceitar esta nossa impotência frente algumas situações na vida. É importante reconhecermos os nossos limites.  Mas, a quem queira tudo e não aceite nunca um não. O “não” só deve ser direcionado ao outro, jamais a si mesmo para criança mimada que mora dentro de nós.  
Lidar também com o desejo do outro não é nada fácil. Para ser reconhecido pelo outro, muitos deixam de reconhecer os seus mais profundos desejos. Para ser o bonzinho, deixa de ser suficientemente bom para si mesmo. Para não contrariar o outro,  se contraria. Para não frustrar o outro, acaba quase sempre frustrado e não ensina a este outro aprender a lidar com suas próprias frustrações. Faz deste outro o seu senhor e se torna o seu escravo. Para não desaprovar, desaprova-se. O medo de perder o amor e o reconhecimento, faz com que perca algo muito importante – a sua auto-estima e respeito por si mesmo.  Para ser aprovado, reprova o seu mais nobre direito – ser único e diferente. É como se tentasse, a todo momento, dizer para o outro: “Eu penso como ti, eu desejo o que você deseja, eu sou como você”. Esta atitude além de perigosa, é um crime e um atentado contra si mesmo.
Lidar com nossos desejos de forma madura será sempre o nosso maior desafio. Se você deseja se libertar de algum desejo, precisa, primeiro, aceita-lo e aprender a conviver com o mesmo, jamais nega-lo. Podemos criar equações menos complicadas para resolver, diante da nossa incapacidade de solucionar equações mais complexas de desejos que dão um nó em nossa mente. Com a mente focada numa equação mais simples e passível de ser solucionada com nossas atuais habilidades, talvez seja mais fácil abandonar uma outra que a gente esteja inapta  a resolver.  É mais fácil substituir um desejo por outro do que destruí-lo. Desejo não se destrói, transforma-se. Talvez, a historinha abaixo, consiga demonstrar a dialética dos desejos que tomam sempre conta de nosso ser.


ERA UMA VEZ...


Era uma vez um desejo que desejava não desejar. Saiu pelo mundo pregando a importância de matar ele mesmo  e os perigos de ser o que ele era - desejo. E cada vez que ele negava si mesmo, mais ele se afirmava como tal. E, à medida que ele se afirmava através de sua negação, mais ele crescia e mais forte ficava. E assim, ele foi crescendo e se fortalecendo  quando o que ele mais desejava era sumir e se enfraquecer. Foi ficando tão grande que passou ocupar espaços que não desejava ocupar, pois a gente se ocupa mais daquilo que a gente se obriga desocupar, do que daquilo que a gente nunca pensou a respeito. Virou um gigante! De tão grande, já não cabia mais em qualquer lugar, fazendo com que lugares cada vez maiores precisassem ser conquistados para cabe-lo e serem, consequentemente,  ocupados por ele. E, por mais que ele pensasse: “Não preciso deste lugar” - mais dependente dele ele ficava, pois tudo aquilo que a gente mais tenta se convencer não precisar, mais dependente a gente fica desta coisa. A verdade é que a gente só não precisa daquilo que a gente nunca pensa a respeito. Com tanto pensamento desejoso, o mundo foi ficando cada vez mais complicado e estratégias para conter a si mesmo, cada vez mais necessárias. Mas, o necessário é o remédio que aumenta o apetite do desejo. Assim, diante da necessidade ele foi ficando cada vez mais voraz. Nesta voracidade, foi devorando muita coisa e se tornou obeso, pesado demais. Ficou tão pesado que ficava difícil carregar a si próprio. E o peso foi deixando o desejo cansado. Cansado, ele foi ficando sem disposição. Sem disposição ele foi ficando sem vontade. E sem vontade ele foi ficando... Foi ficando, simplesmente. E, neste estado de não ter que ser e não ter que ir para lugar algum... Era uma vez um desejo.


ESPAÇO DE REFLEXÃO


Seus desejos são saudáveis ou perversos?
Seus desejos são seus ou você os impõe ao outro?
Seus desejos são um tônico para estruturar objetivos saudáveis de vida e trabalhar na consecução dos mesmos ou são ruminações obsessivas, famintas e sedentas de poder?


DESAFIO


Sente-se diante de um espelho e tenha uma séria conversa com o outro que você internalizou como sendo o  seu “senhor”, fazendo com que você negue os seus próprios desejos para satisfazer os dele. Diga a ele:
 Eu não penso como ti.
 Eu não desejo as mesmas coisas que você.
 Eu sou diferente e único.
Eu tenho meus próprios desejos.
Eu posso ser bom sem ser bobo.
Eu posso ser reconhecido respeitando os meus desejos.
Eu respeito os seus desejos, mas não nego os meus.
O fato de eu não satisfazer seus desejos, não significa que o meu amor por você não exista. O amor não deixa de existir só porque os desejos não podem ser satisfeitos.
Eu me posiciono.
Eu enfrento os seus desejos avessos aos meus.
Eu me acalento quando meus desejos não podem ser realizados.
Eu enfrento o seu desejo de aniquilar o meu, mesmo com medo.

Eu respeito o seu desejo sem precisar me desrespeitar.